15.6.08

Das Dores

Detestava aquilo. Era cansativo. A maioria das pessoas não tinha saco pra escutar. E nem ela pra falar. Preferia estar na igreja contemplando aquela estátua de Jesus. Chegou ao porteiro.

- Olá irmão!

-Olá irmã! Veio preparada pra converter o pecador?

- Claro. Mas porque você mesmo não tentou fazer isso? Seria mais simples, já que você o vê todo dia.

- Infelizmente irmã, o rosto dele transmite uma tristeza terrivel. É algo como se fosse quase inumano. Não consigo olhar nos olhos dele. Roberto sofre muito mas não transparece para ninguém. É um verdadeiro guerreiro. Não consigo olhar nos olhos de pessoas assim.

- Entendo. Mas é nesses momentos que necessitamos ter coragem.

"Um guerreiro!? E tu é um baita de um baitola", pensou. Subiu as escadas pensando como iria lidar com a situação. A igreja parecia uma empresa. Cada integrante tinha uma meta de convertidos por mês. Era ridiculo na visão dela, mas estava escrito no livro que todos deveriam ser salvos. Ficou em frente à porta : 204. Se tirasse o zero do meio do 2 e do 4 ficava 24. Já pensou que o morador era viado. Tocou a campainha. Demorou poucos minutos até que alguem respondesse.

- Quem é?

A voz era meio rouca e grave. Parecia voz de gente que tinha acabado de se engasgar. Era ridícula.

- Meu nome é das Dores.

- Que é que voce quer?

- Eu gostaria de falar com você.

- Não estou. Vá embora!

Normal. Ela ficaria impressionada se isso não acontecesse. Esperou algum tempo pensando que tipo de estratégia usar. Ele nem sequer abriu a porta. Não dava pra se utilisar da fraqueza masculina. Resolveu esperar mais alguns minutos. Sentiu um pequeno cheiro. Parecia peixe recém pescado. Não era agressivo ao nariz, mas, como todo mal cheiro, era desagradavel. Tinha que terminar logo com isso. Voltou a tocar a campainha.

- Por favor seu Roberto! Preciso falar urgentemente com você!

- Tu ainda ta aí, moça! Que é que você quer? Fala pela porta!

- Eu vim aqui para lhe salvar!

- Como é que é, rapaz?

- Estou aqui em nome de Jesus!

Ela detestava esse argumento. Se é que era argumento. Ela estava ali porque a pastora mandou ela ir atras do pecador, já que ele era um pobre coitado. "O cara devia ser tão coitado que nem o porteiro dele aguenta ver a cara dele".O cheiro estava aumentando. A voz estava irritada.

- Que é que Jesus quer comigo, dona!?

- Quer seu louvor! Estou aqui em nome da Igreja do Cristo-Rei Tetraédrico e gostaria de saber se você esta angustiado. Por favor! Deixe-me olhar nos seus olhos de sofrimento e aliviar sua dor.

Quanto amor em suas palavras. Mecânicas as palavras. Era praticamente o mesmo discurso para todos. Ela sonhava com o dia em que chegaria com uma conversa diferente.

- Vá embora!

- Não! Estou aqui para salva-lo!

-Pois que seja...

Ao abrir a porta uma catinga avassaladora entrou estuprando seu nariz. Tentou disfarçar mas não deu. O cheiro era absurdo. Pra piorar, o pecador era feio que doía. E tava pelado. Não deu muita importância para esse fato, já que quando a gente não respira, fica dificil notar certas coisas, inclusive as mais óbvias.

- Meu Jesus!!

- Agora fala !

- Meu Deus! Meu Deus! Cristo pai!

- Mandei ir embora dona.

- Olha... - tomou um pouco de ar - Eu vim aqui pois soube que você é uma alma sofredora.

Notou o tamanho do rapaz. Ela nunca tinha visto algo daquele tamanho. Não ao vivo. E não estava ereto. Sentiu um tremor no corpo e um calor subindo a partir do ventre. O tesão tomou conta do seu ser, mesmo naquelas circunstancias mal cheirosas. Ela amava um homem, e ele está sentado à direita de Deus pai todo-poderoso. Imaginava que seu poder era mais ou menos igual ao daquele rapaz. Das Dores era doente, mas não sabia. Ao menos na concepção do meio em que ela convivia. Gostava de sexo, mas disfarçava muito bem. A dissimulação era uma arte e nisso ela era uma verdadeira artista.

- Moço... se cubra por favor!

- Se eu fechar a porta não abro mais e mando o porteiro lhe expulsar.

- Eu sou uma sacristã a salvar almas. Eu sou a responsavel por recolher o rebanho do senhor. Estou aqui olhando em seus olhos e posso ver como você é sofredor...

Com a cara que ele tinha, nem se ele ganhasse todo ano na loteria ou ganhasse passe livre pro resto da vida pra Bete Cuzcuz, ele ia ter outra cara. Era a de sofredor mesmo. E das piores.

- Seus olhos dizem que Deus precisa entrar em você! Olha... venha pra uma sessão nossa que tenho certeza que você irá se transformar. Proximo domingo irei vir aqui para lhe levar para nosso culto. Você vai se sentir outro... - ela olhou para baixo durante uns dois segundos - ...homem.

- Tá dona. Agora vá embora que eu preciso limpar minha bunda.

A porta se fechou e o cheiro diminuiu. Saiu depressa do recinto chegando logo a portaria.

- Conseguiu falar com o Ricardo?

-O nome dele não era Roberto?

-Era sim. As vezes me esqueço.

- Bem... acho que vou ter que voltar mais dias. Ele parece bem convencido de que não quer salvação. Mas nada que uma boa palavra de amor não mude.

-Amem.

O porteiro estava meio que disfarçando a respiração. Ela ficou com a catinga e tinha que disfarçar o maximo que podia. Saiu depressa e tomou um moto-taxi. Assim ao menos iria disfarçar o cheiro durante o caminho. Infelizmente a catinga tomou boa parte do quarteirão e ficou impregnada por alguns dias.

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